Uma pausa indispensável
A tendência à idolatria é milenar. Desde que o homem aprendeu a temer a morte que a figura do médico, visto como alguém capaz de transferi-la, assumiu compreensíveis ares de divindade.
A massificação do atendimento, a substituição da livre escolha pelo nominata dos credenciados e a ruptura do vínculo pessoal pelo biombo institucional quebraram muito do encanto místico do médico antigo, que acalmava pela palavra e curava pela presença. Mesmo assim, deturpações à parte, sempre haverá lugar para o afago carinhoso, a palavra generosa e o agradecimento inesquecível.
Algumas vezes, somos surpreendidos ao descobrir que nada aproxima mais as pessoas do que a equiparação de afetos e sentimentos.
Numa manhã marcada pelo sofrimento, saí da terapia intensiva depois de constatar a morte encefálica de um menino de 10 anos que fora trazido ao hospital em coma, depois de ter caído de uma construção. Em 36 horas, ele foi operado três vezes para tratar de uma ruptura de traquéia e brônquios, além de uma lesão no baço. Tinham sido 11 dias de angústia acompanhando o sofrimento da família e o desespero incontido da mãe, incansável em acalentar aquela carinha linda com imensos cílios virados, que povoou a muitas das minhas madrugadas depois que tudo terminou.
Massacrado pela sensação de perda, recebi da minha secretária a informação de que nove pessoas me aguardavam no consultório. Consciente de que não tinha condições de atender ninguém, tive um impulso e pedi que todos passassem à minha sala. Diante da surpresa deles- chocados com a perspectiva de uma consulta coletiva-, contei o que tinha acontecido. Perguntei se alguém necessitava de uma consulta urgente, e eu trataria de encaminhá-lo a algum colega. Se não, gostaria muito que voltassem todos, no dia seguinte.
Quando confessei que não tinha condições de atendê-los porque precisava sair urgentemente do hospital para chorar, houve uma comoção naquela sala. Os nove desconhecidos se tocaram, movidos por um misto de consternação e solidariedade. No dia seguinte, quando retornaram, havia entre eles a clara preocupação de checar se algum insensível pudesse ter fraudado a reação solidária do grupo. Mas não. Todos compareceram. E mais do que isso: durante anos, alguns daqueles nove pacientes fizeram consultas desnecessárias comigo para relembrar aquele episódio que marcara tanto a vida deles quanto a minha.
Passados 30 anos do episódio, ainda me impressiona reconhecer que aquela comoção nascera de uma simples confissão de que i médico, como qualquer ser humano, muitas vezes, não consegue prosseguir sem uma pausa. Nem que seja para chorar.
José J. Camargo
Esse texto me foi entregue pela minha grande amiga Caroline num exato momento em que precisei parar tudo para chorar e depois poder recomeçar.